"Sou sempre eu mesma, mas com certeza não serei a mesma pra sempre." Clarice Lispector
quinta-feira, 1 de outubro de 2009
A Guerra Nossa de Cada Dia
Num mundo ainda muito belicoso – que acabou de assistir a violentos embates na Bósnia e na Chechênia e no qual ainda ocorrem guerras civis na África, guerrilhas na Europa e América Latina e conflitos entre árabes e israelenses –, o Brasil, surpreendentemente, ostenta um recorde muito triste: é o país onde acontece o maior número de assassinatos. Aqui, 45 mil pessoas são mortas todos os anos com tiros de armas de fogo. Esta incômoda posição é denunciada em recente relatório da ONU, pouco divulgado pela imprensa.
Para se ter uma idéia da gravidade desses números, é interessante compará-los com os referentes a alguns dos conflitos bélicos mais violentos do século. Nos 10 anos da Guerra do Vietnã (1964/1973), morreram 225 mil pessoas (média de 22,5 mil vítimas por ano); a Guerra da Bósnia, em quatro anos (1992/1995) matou 200 mil pessoas (50 mil por ano). O Brasil, com 45 mil assassinatos, tem, portanto, um índice de mortalidade por armas de fogo equivalente a duas guerras do Vietnã ou a uma Guerra da Bósnia por ano. É muita violência para um país com a democracia consolidada, sem movimentos guerrilheiros e que não participa de qualquer conflito internacional desde a Segunda Guerra.
Os números pertinentes à violência no Brasil denunciam, na verdade, que o País vive uma guerra surda, não declarada, sem bandeira ou ideologia, que evidencia a violência suscitada pela imensa dívida social. Não se pode, obviamente, deixar de considerar o crime organizado, a deficiência dos sistemas públicos de segurança e a impunidade como causas da violência. Entretanto, por mais pragmatismo com que se queira analisar a questão, é impossível deixar de constatar que a fome, a miséria, a carência nas áreas da saúde e da educação, o abandono da infância e da adolescência e os conflitos no campo são os principais caldos de cultura da violência.
Grande parcela da população brasileira está alijada dos direitos da cidadania. São os excluídos, que subsistem nas periferias urbanas, em favelas, palafitas, pontes e viadutos. São crianças famintas, clamando pela vida nas esquinas de suas desventuras. A estes brasileiros não se pode cobrar consciência cívica. Eles são suscetíveis às promessas vazias e aos sonhos de vida melhor oferecidos pelo oportunismo nefasto do submundo do crime e da contravenção. A violência faz parte de sua rotina. Manejá-la é um exercício espontâneo, quase instintivo, de sobrevivência. Sua rotina inglória é muito diferente do dia-a-dia do Brasil dos que têm emprego, casa, escola, alimento, saúde e educação. A congruência física dos dois mundos, porém, escancara a realidade e, na ausência da democratização das oportunidades, socializa a violência.
Assim, paralelamente às medidas do Estado voltadas à melhoria da segurança pública, como o recente projeto de reestruturação da polícia e a nova lei que regulamenta o registro e o porte de armas, o Brasil carece, com urgência, de uma forte e decisiva ação no campo da cidadania. Isto significa que a sociedade civil, de forma organizada, democrática e ordeira, deve mobilizar-se cada vez mais no sentido de reduzir as disparidades sociais e contribuir para a melhoria da qualidade de vida dos excluídos.
Paulatinamente, cresce a consciência sobre a assunção da cidadania. Empresas, fundações, institutos, ONGs e entidades de classe, que constituem o chamado Terceiro Setor, têm dado exemplos muito positivos de que a sociedade pode – e deve – trabalhar no sentido de solucionar seus próprios problemas. Essas instituições ocupam, gradualmente, um espaço que o paternalismo centralizador do regime de exceção de 64 lhes havia tirado. Estima-se que organizações privadas brasileiras estejam destinando 300 milhões de dólares por ano a projetos de atendimento à criança e ao adolescente, saúde, cultura, educação e meio ambiente.
No entanto, ainda há muito a ser feito. A multiplicação de ações dessa natureza, que implica ampla conscientização de toda a sociedade, é a única alternativa do País, neste final de milênio, para reverter o seu grave quadro social. É inadmissível ficar de braços cruzados, assistindo à guerra que, a cada dia, ceifa vidas e fere de morte a consciência moral da Nação.
Publicado na Zero Hora
1998.
Texto:Evelyn Ioschpe
Retirado do site www.fiochpe.org.br
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