Parecia ter nascido assim, amargo por dentro e por fora. Não era porque tinha nascido pobre e sem nenhuma oportunidade na vida. Era mais que isso, mais profundo, estava na mente, no coração e nas entranhas.
Mesmo assim ele conseguiu estudar, se formar e trabalhar num escritório de contabilidade, era contador e dos bons. Não tinha amigos e não fazia questão de tê-los. Apenas desempenhava suas funções e era só.
Todo dia acordava de cara amarrada, de mau humor, como se tivesse uma nuvem negra em cima de sua cabeça. Mal sentava para tomar café, pegava sua mala e saia pela porta como se fosse aquele o último dia de sua vida.
Andava pelas ruas sem notar e sem ser notado. Atravessava as avenidas sem se importar com os carros que vinham em sua direção. Parecia estar além do bem e do mal, da vida e da morte.
Quando encontrava alguém conhecido, não se dava ao trabalho de ser gentil ou simpático. Olhava para a pessoa como se não a enxergasse. Vivia assim, alheio a tudo e a todos.
Mas como diz o ditado: “Um dia é da caça e outro do caçador”. Numa manhã acordou sentindo-se diferente, fora do prumo. Fez o mesmo ritual de todos os dias e saiu apressado.
Nesse dia algo aconteceu, andando pela calçada ele sentiu um mal estar profundo, como se uma faca lhe fora fincada no peito. Parou, olhou à sua volta, e por um breve momento conseguiu fitar as pessoas que freneticamente se moviam de um lado para outro.
Era algo inusitado e até assustador para um homem como ele, que fazia questão de viver sozinho, sem amigos, sem história, sem amor. Tão assustador que por alguns momentos o fizeram enxergar as pessoas e o movimento da Cidade, coisa que nunca tinha feito antes. Foram segundos sentindo aquele gosto na boca, amargo e repugnante. Gosto de quem nunca provou algo doce, como um abraço, um bate-papo, um chopp com amigos no final da tarde.
Aos poucos as forças foram se esvaindo, as pernas não conseguiam agüentar o peso do corpo, ele foi caindo em câmera lenta e nesse instante a sua vida pobre, sem aventura, sem amor e sem emoções foi passando como um filme em sua cabeça. Na memória, simplesmente nada.
Caído ao chão foi sentindo a respiração ficar mais lenta, o ar já não chegava a seus pulmões, ele sentiu que pouco tempo de vida lhe restara e por alguns minutos sentiu medo.
Medo da solidão, de não ter uma mão para segurar nesse momento tão difícil. Foi ai que olhou à sua volta e viu que do mesmo modo que ele não se importara com as pessoas a sua vida inteira, assim também, elas não se importavam com ele caído ao chão, tendo a sua vida por um fio.
Foi nesse instante que se deu conta do vazio que foi a sua existência. E, na sua mente a pergunta não queria calar: Quem se lembraria dele? A resposta era óbvia, restaria apenas uma mesa vazia, num escritório de contabilidade, sem retratos, sem história e sem memórias.
Contudo já era tarde, ele não podia fazer mais nada e a essa altura também não o queria fazer. Se resignou a morrer ali, sozinho, sem lembranças e sem ser lembrado por ninguém.